terça-feira, 22 de novembro de 2011

O Belíssimo Voto do Ministro Carlos Ayres Brito

O Senhor Ministro Ayres Britto (Relator):
Começo este voto pelo exame do primeiro pedido do autor da ADPF nº 132-RJ, consistente na aplicação da técnica da “interpretação conforme à Constituição”  aos incisos II e V do art. 19, mais o art. 33,
todos do Decreto-Lei nº 220/1975 (Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado do Rio de Janeiro). Técnica da “interpretação conforme” para viabilizar  o descarte de  qualquer intelecção desfavorecedora da
convivência estável de servidores homoafetivos, em comparação com a tutela juridicamente conferida à união igualmente estável de servidores heterossexuais. O que, em princípio, seria viável, pois entendo que os dispositivos em foco tanto se prestam para a perpetração da denunciada discriminação odiosa quanto para a
pretendida equiparação de direitos subjetivos. E o fato é que tal plurissignificatividade ou polissemia desse
ou daquele texto normativo é pressuposto  do emprego dessa técnica especial de controle de constitucionalidade que atende pelo nome, justamente, de  “interpretação conforme à Constituição”,  2. Devo reconhecer, porém, que a legislação fluminense, desde 2007 (art. 1º 2 da Lei nº 5.034/2007), equipara “à condição de companheira ou companheiro (...) os parceiros homoafetivos que mantenham relacionamento civil permanente, desde que devidamente comprovado, aplicando-se, para configuração deste, no que couber, os preceitos legais incidentes sobre a união estável de parceiros de sexos diferentes"Sendo que tal equiparação fica limitada ao gozo de benefícios previdenciários, conforme se vê do art. 2º da mesma lei, assim redigido:  “aos servidores públicos estaduais, titulares de cargo efetivo, (...) o direito de averbação, junto à autoridade competente, para fins previdenciários, da condição de parceiros homoafetivos”. O que
implica, ainda que somente quanto a direitos previdenciários,  a perda de objeto dessa presente ação. Perda de objeto que de logo assento quanto a esse específico ponto. Isso porque a lei em causa já confere aos
companheiros homoafetivos o pretendido reconhecimento jurídico da sua união. 3. Já de pertinência ao segundo pedido do autor da mesma ADPF 132, consistente no reconhecimento da incompatibilidade material
entre os citados preceitos fundamentais da nossa Constituição e as decisões administrativas e judiciais que espocam em diversos Estados sobre o tema aqui versado, imperioso é dizer que tal incompatibilidade
em si não constitui novidade. É que ninguém ignora o dissenso que se abre em todo tempo.                          
 3 E lugar sobre a liberdade da inclinação sexual das pessoas, por modo quase sempre temerário para a estabilidade da vida coletiva. Dissenso a que não escapam magistrados singulares e membros de Tribunais Judiciários, com o sério risco da indevida mescla entre a dimensão exacerbadamente subjetiva de uns e de outros e a dimensão objetiva do Direito que lhes cabe aplicar.
 “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência
pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.  Com o que este Plenário terá bem 4 mais abrangentes possibilidades de, pela
primeira vez no curso de sua longa história, apreciar o mérito dessa tão recorrente quanto intrinsecamente relevante controvérsia em torno da união estável entre pessoas do mesmo sexo, com todos os seus
consectários jurídicos. Em suma, estamos a lidar com um tipo de dissenso judicial que reflete o fato histórico de que  nada incomoda mais as pessoas do que a preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade.  É a perene postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado  coração.
 E, desde logo, verbalizo que merecem guarida os pedidos formulados pelos requerentes de
ambas as ações. Pedido de “interpretação conforme à Constituição” do dispositivo legal impugnado (art. 1.723 do Código Civil), porquanto nela mesma, Constituição, é que se encontram as decisivas respostas
para o tratamento jurídico a ser conferido às uniões homoafetivas que se caracterizem por sua durabilidade, conhecimento do público (não-clandestinidade, portanto) e continuidade, além do propósito ou
verdadeiro anseio de constituição de uma  família.
 Ainda nesse ponto de partida da análise meritória da questão, calha anotar que o termo “homoafetividade”, aqui utilizado para identificar o vínculo de afeto e solidariedade entre os pares ou parceiros do mesmo sexo, não constava dos dicionários da língua portuguesa. O vocábulo foi cunhado pela vez primeira na obra “União
Homossexual, o Preconceito e a Justiça”, da autoria da desembargadora aposentada e jurista Maria Berenice Dias, consoante a seguinte passagem: “Há palavras que carregam o estigma do preconceito. Assim, o afeto a
pessoa do mesmo sexo chamava-se 'homossexualismo'. Reconhecida a inconveniência do sufixo 'ismo', que está ligado a doença, passou-se a falar em 'homossexualidade', que sinaliza um determinado jeito de ser. Tal mudança, no entanto, não foi suficiente para pôr fim ao repúdio social ao amor entre iguais” (Homoafetividade: um novo substantivo)”.
 Sucede que não foi somente a comunidade dos juristas, defensora dos direitos subjetivos de natureza homoafetiva, que popularizou o novo substantivo, porque sua utilização corriqueira já deita raízes
nos dicionários da língua portuguesa, a exemplo do “Dicionário Aurélio”2 . Verbete de que me valho no presente voto para dar conta, ora do enlace por amor, por afeto, por intenso carinho entre pessoas do mesmo sexo, ora da união erótica ou por atração física entre esses mesmos pares de seres humanos. União, aclare-se, com perdurabilidade o bastante para a constituição de um novo núcleo doméstico,                                              
2  “Homoafetividade 1.Qualidade ou caráter de homoafetivo. 2. Relação afetiva e sexual entre pessoas do
mesmo sexo. Homoafetivo 1. Que diz respeito à afetividade e a sexualidade entre pessoas do mesmo
sexo. 2. Realizado entre as pessoas do mesmo sexo: casamento homoafetivo.3. Relativo ou pertencente a,
ou próprio de duas pessoas que mantém relação conjugal, ou que pretendem fazê-lo: direito homoafetivos.” (Dicionário Aurélio, 5ª Edição, fl. 1105).  9 tão socialmente ostensivo na sua existência quanto vocacionado para a expansão de suas fronteiras temporais. Logo, vínculo de caráter privado, mas sem o viés do propósito
empresarial, econômico, ou, por qualquer forma, patrimonial, pois não se trata de u’a mera  sociedade de fato ou interesseira parceria  mercantil. Trata-se, isto sim, de um voluntário navegar por um rio sem margens
fixas e sem outra embocadura que não seja a experimentação de um novo a dois que se
alonga tanto que se faz universal. E não compreender isso talvez comprometa por modo irremediável a própria capacidade de interpretar os institutos jurídicos há pouco invocados, pois − é Platão quem o diz -,
“quem não começa pelo amor nunca saberá o que é filosofia”. É a categoria do afeto como pré-condição do pensamento, o que levou  Max Scheler a também ajuizar que “O ser humano, antes de um ser pensante ou
volitivo, é um ser amante”  Com esta elucidativa menção à terminologia em debate, que bem me anima a
cunhar, por conta própria, o antônimo da heteroafetividade,  passo ao enfoque propriamente constitucional do mérito das ações. Isto para ajuizar, de pronto, que  a primeira oportunidade em que a nossa Constituição Federal emprega o vocábulo “sexo” é no inciso IV do seu art. 3º 4 . O artigo, versante sobre os “objetivos                                              
 Textos recolhidos de ensaio escrito por Sérgio da Silva Mendes e a ser publicado no XX Compedi, com
o nome de “Unidos pelo afeto, separados por um parágrafo”, a propósito, justamente, da questão homoafetiva perante o §3º do art. 226 da CF) ,   “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:  (...)  IV − promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.  10 fundamentais” da nossa República Federativa;
o inciso, a incorporar a palavra “sexo” para emprestar a ela o nítido significado de conformação anátomo-fisiológica descoincidente entre o homem e a mulher.
 Prossigo para ajuizar que esse primeiro trato normativo da matéria já antecipa que  o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica.  É como dizer: o que se tem no dispositivo constitucional aqui reproduzido em nota de rodapé (inciso IV do
art 3º) é a explícita vedação de tratamento  discriminatório ou preconceituoso em razão 11do sexo dos seres humanos. Tratamento discriminatório ou  desigualitário  sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos” (este o explícito objetivo que se lê no inciso em foco).  “Bem de todos”, portanto, constitucionalmente versado como uma situação jurídica ativa a que se chega pela eliminação do preconceito de sexo. Se se
prefere, “bem de todos” enquanto valor objetivamente posto pela Constituição para dar sentido e propósito ainda mais adensados à vida de cada ser humano em particular, com reflexos positivos no equilíbrio da
sociedade. O que já nos remete para o preâmbulo da nossa Lei Fundamental, consagrador do Constitucionalismo fraternal” sobre que discorro no capítulo de nº VI da obra “Teoria da Constituição”,
Editora Saraiva, 2003. Tipo de constitucionalismo, esse, o fraternal, que se volta para a integração comunitária das pessoas (não exatamente para a “inclusão social”), a se viabilizar pela imperiosa adoção de políticas públicas afirmativas da fundamental  igualdade civil-moral (mais do que simplesmente econômico-social) dos estratos sociais historicamente desfavorecidos e até vilipendiados. Estratos ou segmentos sociais como, por ilustração, o dos negros, o dos índios, o das mulheres, o dos portadores de deficiência física e/ou
mental e o daqueles que, mais recentemente, deixaram de ser referidos como “homossexuais” para ser identificados pelo nome de “homoafetivos”. Isto de parelha com leis e políticas públicas de cerrado combate
ao preconceito, a significar, em última análise,  a plena aceitação e subseqüente experimentação do pluralismo sócio-políticocultural. Que é um dos explícitos valores do mesmo preâmbulo da nossa Constituição e um
dos fundamentos da República Federativa do Brasil (inciso V do art. 1º). Mais ainda, pluralismo que serve de elemento conceitual da própria democracia material ou de substância, desde que se inclua no conceito
da democracia dita substancialista  a respeitosa convivência dos contrários. Respeitosa convivência dos contrários que John Rawls interpreta como a superação de relações historicamente servis ou de
verticalidade sem causa. Daí conceber um “princípio de diferença”, também estudado por Francesco Viola sob o conceito de “similitude” (ver ensaio de Antonio Maria Baggio, sob o título de “A redescoberta da
fraternidade na época do ‘terceiro’ 1789”, pp. 7/24 da coletânea “O PRINCÍPIO ESQUECIDO”, CIDADE NOVA, São Paulo, 2008).
 Mas é preciso lembrar que o substantivo “preconceito” foi grafado pela nossa Constituição com o sentido prosaico ou dicionarizado que ele porta; ou seja, preconceito é um conceito prévio. Uma formulação conceitual antecipada ou engendrada pela mente humana fechada em si mesma e por isso carente de apoio na
realidade. Logo,  juízo de valor não autorizado pela realidade, mas imposto a ela. E imposto a ela, realidade,  a ferro e fogo de u’a mente voluntarista, ou sectária, ou supersticiosa, ou obscurantista, ou industriada, quando não voluntarista, sectária, supersticiosa, obscurantista e industriada ao mesmo tempo. Espécie de trave no olho da razão e até do sentimento, mas coletivizada o bastante para se fazer de traço cultural de toda uma gente ou população geograficamente situada. O que a torna ainda mais perigosa para a harmonia
social e a verdade objetiva das coisas. Donde  René Descartes emitir a célebre e corajosa proposição de que “Não me impressiona o argumento de autoridade, mas, sim, a autoridade do argumento”, numa época
tão marcada pelo dogma da infalibilidade papal e da fórmula absolutista de que “O rei não pode errar” (The king can do no wrong”). Reverência ao valor da verdade que também se lê nestes conhecidos versos de  Fernando Pessoa, três séculos depois da proclamação cartesiana: “O universo não é uma idéia minha./A idéia que eu tenho do universo é que é uma idéia minha”.        
 Há mais o que dizer desse emblemático inciso IV do art. 3º da Lei Fundamental brasileira. É que, na sua categórica vedação ao preconceito, ele nivela o sexo à origem social e geográfica da pessoas, à idade, à
raça e à cor da pele de cada qual; isto é, o sexo a se constituir num dado empírico que nada tem a ver com o merecimento ou o desmerecimento inato das pessoas,  pois não se é mais digno ou menos digno pelo fato de se ter nascido mulher, ou homem. Ou nordestino, ou sulista. Ou de pele negra, ou mulata, ou morena, ou branca, ou avermelhada. Cuida-se, isto sim, de algo já alocado nas tramas do acaso ou das coisas que só dependem da química da própria Natureza, ao menos no presente estágio da Ciência e da Tecnologia humanas.
 Ora, como essa diferente conformação anatomo-fisiológica entre o homem e a mulher se revela, usualmente, a partir dos respectivos órgãos genitais (o critério biológico tem sido esse), cada qual desses órgãos de elementar diferenciação entre partes passou a também se chamar, coloquialmente, de “sexo”. O órgão a tomar o nome do ser em que anatomicamente incrustado.  Mas “sexo” ou “aparelho sexual” como signo lingüístico de um sistema de órgãos cumpridores das elementares funções de estimulação erótica, conjunção carnal e reprodução biológica. Três funções congênitas, como sabido, e que, por isso mesmo, prescindentes de livros, escola, cultura ou até mesmo treinamento para o seu concreto desempenho. Donde sua imediata
definição, não propriamente como categoria mental ou exclusiva revelação de  sentimento,  mas como realidade também situada nos domínios do instinto e não raro com a prevalência dele no ponto de partida
das relações afetivas.  “Instinto sexual ou libido”, como prosaicamente falado, a retratar o fato da indissociabilidade ou unidade incindível entre o aparelho genital da pessoa humana e essa pessoa mesma. 15
Ficando de fora da expressão, claro, as funções meramente mecânicas de atendimento às necessidades ditas “fisiológicas” de todo indivíduo. Nada obstante, sendo o Direito uma técnica de controle social (a mais engenhosa de todas), busca submeter, nos limites da razoabilidade e da proporcionalidade, as relações deflagradas a partir dos  sentimentos e dos próprios instintos humanos às normas que lhe servem de repertório e essência. Ora por efeito de uma “norma geral positiva” (Hans Kelsen), ora por efeito de
uma “norma geral negativa” (ainda segundo Kelsen, para cunhar as regras de clausura ou fechamento do Sistema Jurídico, doutrinariamente concebido como realidade normativa que se dota dos atributos da
plenitude, unidade e coerência).
Precisamente como, em parte, faz a nossa
Constituição acerca das funções sexuais das pessoas. Explico.
 Realmente, em tema do concreto uso do sexo nas três citadas funções de estimulação erótica, conjunção carnal e reprodução biológica, a Constituição brasileira opera por um intencional silêncio.  Que já é um
modo de atuar mediante o saque da kelseniana norma geral negativa, segundo a qual “tudo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido” (regra de clausura ou fechamento hermético do Direito, que a nossa Constituição houve por bem positivar no inciso II do seu art. 5º, debaixo da altissonante fórmula verbal de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, e que me parece consagradora do que se poderia chamar de direito de não ter dever). É falar: a Constituição Federal não dispõe, por modo expresso, acerca das três clássicas modalidades do concreto emprego do aparelho sexual humano. Não se refere explicitamente à subjetividade das pessoas para optar pelo não-uso puro e simples do seu aparelho genital (absenteísmo sexual ou voto de castidade), para usá-lo solitariamente (onanismo), ou, por fim, para utilizá-lo por modo emparceirado. Logo, a Constituição entrega o empírico desempenho de tais  funções sexuais ao livre arbítrio de cada pessoa,  pois o silêncio normativo, aqui, atua como absoluto respeito a algo que, nos animais em geral e nos seres humanos em particular, se define como instintivo ou da própria natureza das coisas.  Embutida nesse modo instintivo de ser a “preferência” ou “orientação” de cada qual das pessoas naturais. Evidente! .
  “Art. 10 – O Estado do Mato Grosso e seus Municípios assegurarão, pela lei e pelos atos dos agentes de
seus Poderes, a imediata e plena efetividade e todos os direitos e garantias individuais e coletivas, além
dos correspondentes deveres, (...), nos termos seguintes:  (...) III – a implantação de meios assecuratórios de que ninguém será prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, raça, cor, sexo, estado civil, natureza de seu trabalho, idade, religião, orientação sexual, convicções políticas ou filosóficas, deficiência física ou mental e qualquer particularidade ou condição” que abarca a dimensão sexual de cada qual deles. Por conseguinte, cuida-se de proteção constitucional que faz da livre disposição da sexualidade do indivíduo um autonomizado instituto jurídico. Um tipo de liberdade que é, em si e por si, um autêntico bem de personalidade. Um dado elementar da criatura humana em sua intrínseca dignidade de universo à parte. Algo já transposto ou catapultado para a inviolável esfera da autonomia de vontade do indivíduo, na medida
em que sentido e praticado como elemento da compostura anímica e psicofísica (volta-se a dizer) do ser humano em busca de sua plenitude existencial. Que termina sendo uma busca de si mesmo, na luminosa trilha do “Torna-te quem és”, tão bem teoricamente explorada por Friedrich Nietzsche. Uma busca da irrepetível identidade individual que, transposta para o plano da aventura humana como um todo, levou Hegel a sentenciar que a evolução do espírito do tempo se define como um caminhar na direção do aperfeiçoamento de si mesmo  (cito de memória).  Afinal, a sexualidade, no seu notório transitar do prazer puramente físico para os colmos olímpicos da extasia amorosa, se põe como um plus ou superávit de vida. Não enquanto um
minus ou déficit existencial. Corresponde a um ganho, um bônus, um regalo da natureza, e não a uma subtração, um ônus, um peso ou estorvo, menos ainda a uma reprimenda dos deuses em estado de fúria ou de alucinada retaliação perante o gênero humano.  No particular, o derramamento de bílis que tanto prejudica a produção dos neurônios é coisa dos homens; não dos deuses do Olimpo, menos ainda da natureza. O que, por certo, 19 inspirou Jung (Carl Gustav) a enunciar que “A homossexualidade, porém, é entendida não
como anomalia patológica, mas como identidade psíquica e, portanto, como equilíbrio específico que o sujeito encontra no seu processo de individuação”. Como que antecipando um dos conteúdos do preâmbulo da nossa Constituição, precisamente aquele que insere “a liberdade” e “a igualdade” na lista dos “valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)”. Nesse fluxo de interpretação
constitucional das coisas, vê-se que estamos a lidar com normas que não distinguem a espécie feminina da espécie masculina, como não excluem qualquer das modalidades do concreto uso da sexualidade de cada pessoa natural. É ajuizar: seja qual for a preferência sexual das pessoas, a qualificação dessa preferência como conduta juridicamente lícita se dá por antecipação. Até porque, reconheçamos,  nesse movediço
terreno da sexualidade humana é impossível negar que a presença da natureza se faz particularmente forte. Ostensiva. Tendendo mesmo a um tipo de mescla entre instinto e sentimento que parece começar pelo primeiro, embora sem o ortodoxo sentido de pulsão. O que já põe o Direito em  estado de alerta,
para não incorrer na temeridade de regulamentar o factual e axiologicamente irregulamentável. A não ser quando a sexualidade de uma pessoa é manejada para negar a sexualidade da outra, como sucede,
por exemplo, com essa ignominiosa violência a que o Direito apõe o rótulo de estupro. Ou 20 com o desvario ético-social da pedofilia e do incesto. Ou quando resvalar para a zona legalmente proibida do concubinato.
 Óbvio que, nessa altaneira posição de direito fundamental e bem de personalidade, a preferência sexual se põe como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana” (inciso III do art. 1º da
CF), e, assim, poderoso fator de afirmação e elevação pessoal. De auto-estima no mais elevado ponto da consciência. Auto-estima, de sua parte, a aplainar o mais abrangente caminho da felicidade, tal como
positivamente normada desde a primeira declaração norte-americana de direitos humanos (Declaração de . Daqui se deduz que a liberdade sexual do ser humano somente deixaria de se inscrever no âmbito de incidência desses últimos dispositivos constitucionais (inciso X e §1º do art. 5º), se houvesse enunciação igualmente constitucional em sentido diverso. Coisa que não existe. Sendo certo que o direito à intimidade diz
respeito ao indivíduo consigo mesmo (pensese na lavratura de um diário), tanto quanto a privacidade se circunscreve ao âmbito do indivíduo em face dos seus parentes e pessoas mais chegadas (como se dá na troca de e-mails, por exemplo). Faço uma primeira síntese, a título de fundamentação de mérito do presente voto.
I - a Constituição do Brasil proíbe, por modo expresso, o preconceito em razão do sexo ou da natural diferença entre a mulher e o homem. Uma proibição que nivela o fato de ser homem ou de ser mulher
às contingências da origem social e geográfica das pessoas, assim como da idade, da cor da pele e da raça,
na acepção de que nenhum desses fatores acidentais ou fortuitos se põe como causa de merecimento ou de
desmerecimento intrínseco de quem quer que seja;  II - Não se prestando como fator de merecimento inato ou de intrínseco desmerecimento do ser humano, o pertencer ao sexo masculino ou então ao sexo feminino
é apenas um fato ou acontecimento que se inscreve nas tramas do imponderável. Do incognoscível. Da
química da própria natureza. Quem sabe, algo que se passa nas secretíssimas confabulações do óvulo feminino e do espermatozóide masculino que o fecunda, pois o tema se expõe, em sua faticidade mesma, a todo tipo de especulação metajurídica. Mas é preciso aduzir, já agora no espaço da cognição jurídica propriamente dita, que a 24 vedação de preconceito em razão da compostura masculina ou então feminina das pessoas  também incide quanto à possibilidade do concreto uso da sexualidade de que eles são
necessários portadores. Logo, é tão proibido discriminar as pessoas em razão da sua espécie masculina ou
feminina quanto em função da respectiva preferência sexual. Numa frase: há um direito constitucional
líquido e certo à isonomia entre homem e mulher: a)de não sofrer discriminação pelo fato em si da
contraposta conformação anátomofisiológica; b) de fazer ou deixar de fazer uso da respectiva
sexualidade; c) de, nas situações de uso emparceirado da sexualidade, fazê-lo com pessoas adultas do
mesmo sexo, ou não; quer dizer, assim como não assiste ao espécime masculino o direito de não ser
juridicamente equiparado ao espécime feminino − tirante suas diferenças  biológicas −, também não assiste às pessoas heteroafetivas  o direito de se contrapor à sua equivalência jurídica perante  sujeitos homoafetivos. O que existe é precisamente o contrário: o direito da mulher a tratamento igualitário com os homens, assim como o direito dos homoafetivos a tratamento isonômico com os heteroafetivos; 25 III – cuida-se, em rigor, de um salto normativo da proibição de preconceito para a proclamação do próprio direito a uma concreta
liberdade do mais largo espectro, decorrendo tal liberdade de um intencional mutismo da Constituição
em tema de empírico emprego da sexualidade humana. É que a total ausência de previsão  normativoconstitucional sobre esse concreto desfrute da preferência sexual das pessoas  faz entrar em ignição, primeiramente, a regra universalmente válida de que “tudo aquilo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido” (esse o conteúdo do inciso II do art. 5º da nossa
Constituição); em segundo lugar, porque  nada é de maior intimidade ou de mais entranhada privacidade
do que o factual emprego da sexualidade humana. E o certo é que intimidade e vida privada são direitos individuais de primeira grandeza constitucional, por dizerem respeito à personalidade ou ao modo único de ser das pessoas naturais. Por isso mesmo que de sua rasa e crua desproteção jurídica, na matéria de que nos ocupamos, resultaria brutal intromissão do Estado no direito subjetivo a uma troca de afetos e satisfação de desejos tão  in natura que o poetacantor Caetano Velloso bem traduziu 26 na metafórica locução “bruta flor do querer”. E em terceiro lugar, a âncora normativa do §1º do mesmo art. 5º da Constituição;  IV – essa liberdade para dispor da própria sexualidade insere-se no rol dos direitos fundamentais doindivíduo, expressão que é de autonomia de vontade, direta emanação do princípio da dignidade
da pessoa humana  e até mesmo “cláusula pétrea”, nos termos do inciso IV do §4º do art. 60 da CF (cláusula que abrange “os direitose garantias individuais” de berço diretamente constitucional); V – esse mesmo e fundamental
direito de explorar os potenciais da própria sexualidade tanto é exercitável no plano da intimidade (absenteísmo sexual e onanismo) quanto da privacidade (intercurso sexual ou coisa que o valha). Pouco importando, nesta última suposição, que o parceiro adulto seja do mesmo sexo, ou não, pois a situação jurídica em foco é de natureza potestativa (disponível, portanto) e de espectro funcional que só pode correr parelha com a livre imaginação ou personalíssima alegria amorosa, que outra coisa não é senão a entrega do ser humano às suas próprias fantasias ou expectativas erótico-afetivas. A
sós, ou em parceria, renove-se o juízo.  É como dizer: se o corpo se 27
divide em partes, tanto quanto a alma se divide em princípios, o Direito só tem uma coisa a fazer: tutelar a voluntária mescla de tais partes e princípios numa amorosa unidade. Que termina sendo a própria simbiose do corpo e da alma
de pessoas que apenas desejam conciliar pelo modo mais solto e orgânico possível sua dualidade personativa em um sólido conjunto, experimentando aquela  nirvânica aritmética amorosa que Jean-Paul Sartre sintetizou na fórmula de que:  na matemática do amor,  um mais um... é igual a um;
VI – enfim, assim como não se pode separar as pessoas naturais do sistema de órgãos que lhes timbra a anatomia e funcionalidade sexuais, também não se pode excluir do direito à intimidade e à vida privada dos indivíduos a dimensão sexual do seu telúrico existir.Dimensão que, de tão natural e até
mesmo instintiva, só pode vir a lume assim por modo predominantemente natural e instintivo mesmo, respeitada a mencionada liberdade do concreto
uso da sexualidade alheia. Salvo se a nossa Constituição lavrasse no campo da explícita proibição (o que seria tão obscurantista quanto factualmente inútil), ou do levantamento de diques para o fluir da sexuada imaginação das pessoas 28 (o que também seria tão empiricamente ineficaz quanto ingênuo até, pra não dizer ridículo). Despautério a que não se permitiu a nossa Lei das Leis. Por conseqüência, homens e mulheres: a) não podem ser discriminados em
função do sexo com que nasceram; b) também não podem ser alvo de discriminação pelo empírico uso que vierem a fazer da própria sexualidade; c) mais que isso, todo espécime feminino ou masculino goza da fundamental liberdade de dispor sobre o respectivo potencial de sexualidade, fazendo-o como expressão do direito à intimidade, ou então à privacidade (nunca é
demais repetir). O que significa o óbvio reconhecimento de que  todos são iguais em razão da espécie humana de que façam parte e das tendências ou preferências sexuais que lhes ditar, com exclusividade, a própria natureza, qualificada pela nossa Constituição como autonomia de vontade. Iguais para suportar deveres, ônus e obrigações de caráter jurídico-positivo, iguais para titularizar direitos, bônus e interesses também juridicamente positivados.
26. Se é assim, e tratando-se de direitos clausulados como pétreos (inciso IV do §4º do artigo constitucional de nº  60), cabe 29 perguntar se a Constituição Federal sonega aos parceiros homoafetivos, em estado de prolongada ou estabilizada união, o mesmo regime jurídico-protetivo que dela se desprende para favorecer os casais heteroafetivos em situação de voluntário enlace igualmente caracterizado pela estabilidade.  Que, no fundo, é o móvel da
propositura das duas ações constitucionais sub judice. 27. Bem, para responder a essa decisiva pergunta, impossível deixar de começar pela análise do capítulo constitucional que tem como seu englobado conteúdo, justamente, as figuras jurídicas da família, do casamento civil, da união estável, do planejamento familiar e da adoção. É o capítulo de nº VII, integrativo do título constitucional versante sobre a “Ordem Social” (Título VIII). Capítulo nitidamente protetivo dos cinco mencionados institutos,  porém com ênfase para a família, de logo aquinhoada com a cláusula expressa da especial proteção do Estado,  verbis: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (caput do ar. 226). Em seqüência é que a nossa Lei Maior aporta consigo os dispositivos que mais de perto interessam ao equacionamento das questões de que tratam as  duas ações sob julgamento, que são os seguintes: a) “O casamento é civil e gratuita a sua celebração” (§1º); b) ”O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei” (§2º);
28. De toda essa estrutura de linguagem prescritiva (“textos normativos”, diria
Friedrich Müller), salta à evidência que  a parte mais importante é a própria cabeça do art. 226, alusiva à instituição da família,pois somente ela − insista-se na observação 31 - é que foi contemplada com a referida cláusula da especial proteção estatal. Mas família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente homoafetivas.  Logo,  família como fato cultural e espiritual ao mesmo tempo (não necessariamente como fato biológico). Tanto
assim que referida como parâmetro de fixação do salário mínimo de âmbito nacional (inciso IV do art. 7º) e como específica parcela da remuneração habitual do trabalhador (“salário-família”, mais precisamente, consoante o inciso XII do mesmo art. 5º), sem que o Magno Texto Federal a subordinasse
a outro requisito de formação que não a faticidade em si da sua realidade como autonomizado conjunto  doméstico. O mesmo acontecendo com outros dispositivos constitucionais, de que servem de amostra os incisos XXVI, LXII e LXIII do art. 5º; art.191; inciso IV e §12 do art. 201; art. 203; art. 205 e inciso IV do art. 221,  nos quais permanece a invariável diretriz do não-atrelamento da formação da família a casais heteroafetivos nem a qualquer
formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa; vale dizer, em todos esses preceitos a Constituição limita o seu discurso ao reconhecimento da família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Sem embargo de, num solitário parágrafo §1º do art. 183,
referir-se à dicotomia básica do homem e da 32 mulher, mas, ainda assim: a)como forma especial de equiparação da importância jurídica do respectivo labor masculino e feminino; b) como resposta normativa ao fato de que, não raro, o marido ou companheiro abandona o lar e com mais facilidade se
predispõe a negociar seu título de domínio ou de concessão de uso daquele bem imóvel até então ocupado pelo casal. Base de inspiração ou vetores que já obedecem a um outro tipo de serviência a valores que não se hierarquizam em função da heteroafetividade ou da homoafetividade das pessoas.
 Deveras, mais que um singelo instituto de Direito em sentido objetivo, a
família é uma complexa instituição social em sentido subjetivo. Logo, um aparelho, uma entidade, um organismo, uma estrutura das mais permanentes relações intersubjetivas, um aparato de poder, enfim. Poder doméstico,
por evidente, mas no sentido de centro subjetivado da mais próxima, íntima,
natural, imediata, carinhosa, confiável e prolongada forma de agregação humana. Tão insimilar a qualquer outra forma de agrupamento humano quanto a pessoa natural perante outra, na sua elementar função de primeiro e insubstituível elo entre o indivíduo e a sociedade. Ambiente primaz, acresça-se, de uma convivência empiricamente instaurada por iniciativa de pessoas que se vêem tomadas da mais qualificada das empatias, porque envolta numa atmosfera de afetividade, aconchego habitacional, concreta admiração ético-espiritual e propósito de felicidade tão 33 emparceiradamente experimentada quanto distendida no tempo e à vista de todos. Tudo isso permeado da franca possibilidade de extensão desse estado personalizado de coisas a outros membros desse mesmo núcleo doméstico, de que servem de amostra os
filhos (consangüíneos ou não), avós, netos, sobrinhos e irmãos.  Até porque esse núcleo familiar é o principal lócus de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida
privada” (inciso X do art. 5º), além de, já numa dimensão de moradia, se constituir no asilo “inviolável do indivíduo”, consoante dicção do inciso XI desse mesmo artigo constitucional. O que responde pela transformação de anônimas casas em personalizados lares, sem o que não se tem um igualmente personalizado  pedaço de chão no mundo. E sendo assim a mais natural das
coletividades humanas ou o apogeu da integração comunitária, a família teria
mesmo que receber a mais dilatada conceituação jurídica e a mais extensa rede de proteção constitucional. Em rigor, uma palavra-gênero, insuscetível de antecipado fechamento conceitual das espécies em que pode culturalmente se desdobrar. Daqui se desata a nítida compreensão de que a família é, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionalmente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole
privada.  O que a credencia como base da sociedade, pois também a sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária e espiritualmente estruturada (não sendo por outra razão que Rui Barbosa definia a família como “a Pátria amplificada”).  Que termina sendo o alcance de uma forma superior de vida coletiva, porque especialmente inclinada para o crescimento espiritual dos respectivos integrantes. Integrantes humanos em concreto estado de
comunhão de interesses, valores e consciência da partilha de um mesmo destino histórico. Vida em comunidade, portanto, sabido que comunidade vem de “comum unidade”. E como toda comunidade, tanto a família como a sociedade civil são usinas de comportamentos assecuratórios da sobrevivência, equilíbrio e evolução do Todo e de cada uma de suas partes. Espécie de locomotiva social ou  cadinho em que se tempera o próprio caráter dos seus individualizados membros e se chega à serena compreensão de que ali é verdadeiramente o espaço do mais entranhado afeto e desatada cooperação. Afinal, é no regaço da família que desabrocham com muito mais viço as virtudes subjetivas da tolerância, sacrifício e renúncia, adensadas por um tipo de compreensão que certamente esteve presente na proposição spnozista de que, “Nas coisas ditas humanas, não há o que crucificar, ou ridicularizar. Há só o que compreender”. Ora bem,  é desse anímico e cultural
conceito de família que se orna a cabeça do art. 226 da Constituição. Donde a sua 35 literal categorização com “base da sociedade”. E assim norma da como figura central ou verdadeiro continente para tudo o mais, ela, família, é que deve servir de norte para a interpretação dos dispositivos em que o capítulo VII se desdobra, conforme transcrição acima feita. Não o inverso. Artigos que têm por objeto os institutos do casamento civil, da união estável, do planejamento familiar, da adoção, etc., todos eles somente apreendidos na inteireza da respectiva compostura e funcionalidade na medida em que imersos no  continente (reitere-se o uso da metáfora) em que a instituição da família consiste.    
 E se insistimos na metáfora do “continente” é porque o núcleo doméstico em
que a família se constitui ainda cumpre explícitas funções jurídicas do mais alto relevo individual e coletivo, amplamentejustificadoras da especial proteção estatal que lhe assegura o citado art. 226. Refirome a preceitos que de logo tenho como fundamentais pela sua mais entranhada serventia para a concreção dos princípios da cidadania, da dignidade da pessoa humana e
dos valores sociais do trabalho, que são, respectivamente, os incisos II, III e IV do art. 1º da CF. Logo, preceitos fundamentais por reverberação, arrastamento ou reforçada complementaridade, a saber: I – “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da  família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao 36 pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho”; II – “Art. 227. É dever da  família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”;
 Assim interpretando por forma  não reducionista o conceito de família, penso
que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo − data vênia de opinião divergente - é extrair do sistema de comandos da Constituição os encadeados
juízos que precedentemente verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais  heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qualquer outro e constituído, em regra, com as mesmas
notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade. Pena de se consagrar uma liberdade homoafetiva pela metade ou condenada a encontros tão ocasionais quanto clandestinos ou subterrâneos. Uma canhestra liberdade “mais ou menos”, para lembrar um poema alegadamente psicografado pelo tão prestigiado médium brasileiro Chico Xavier, hoje falecido, que, iniciando pelos versos de que “A gente pode morar numa casa mais ou menos,/Numa rua mais ou menos,/ Numa cidade mais ou menos”/ E até ter um governo mais ou menos”, assim conclui a sua lúcida mensagem: 39 “O que a gente não pode mesmo,/ Nunca, de jeito nenhum,/ É amar mais ou menos,/ É sonhar mais ou menos,/ É ser amigo mais ou menos,/ (...) Senão a gente corre o risco de
se tornar uma pessoa mais ou menos”. Passemos, então, a partir desse
contexto normativo da família como base da sociedade e entidade credora da especial tutela do Estado, à interpretação de cada qual dos institutos em que se desdobra esse emblemático art. 226 da Constituição. Institutos que principiam pelo casamento civil, a saber: I – “O casamento é civil e gratuita a celebração”. Dando-se que “O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei” (§§1º e 2º). Com o que essa figura do casamento perante o Juiz, ou religiosamente celebrado com efeito civil, comparece como uma das modalidades de constituição da família.  Não a única forma, como, agora sim, acontecia na Constituição de 1967, literis: “A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos” (caput do art. 175, já considerada a Emenda Constitucional nº1, de 1969). É deduzir: se, na Carta Política vencida, toda a ênfase protetiva era para o casamento, visto que ele açambarcava a família como entidade, agora, na Constituição vencedora, a ênfase tutelar se desloca para a instituição da família 40 mesma. Família que pode prosseguir, se houver descendentes ou então agregados, com a eventual dissolução do casamento (vai-se o casamento, fica a família). Um liame já não umbilical como o que prevalecia na velha ordem constitucional, sobre a qual foi jogada, em hora mais que ansiada, a última pá de cal. Sem embargo do reconhecimento de que essa primeira referência ao casamento de  papel passado traduza uma homenagem da nossa Lei Fundamental de 1988 à tradição. Melhor dizendo, homenagem a uma tradição ocidental de maior prestígio sociocultural-religioso a um modelo de matrimônio que ocorre à vista de todos, com pompa e circunstância e revelador de um pacto afetivo que se deseja tão publicamente conhecido que celebrado ante o juiz, ou o sacerdote juridicamente habilitado, e sob o testemunho igualmente formal de pessoas da sociedade. Logo, um pacto formalmente predisposto à perdurabilidade e deflagrador de tão conhecidos quanto inquestionáveis efeitos jurídicos de monta, como, por exemplo, a definição do regime de bens do casal, sua submissão a determinadas regras de direito sucessório, pressuposição de paternidade na fluência do matrimônio.                                       “Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casa (...)” 41 mudança do estado civil dos contraentes, que de solteiros ou viúvos passam automaticamente à condição de casados. A justificar, portanto, essas primeiras
referências que a ele, casamento civil, faz a nossa Constituição nos dois parágrafos em causa (§§1º e 2º do art. 226); ou seja, nada mais natural que
prestigiar por primeiro uma forma de constituição da família que se apresenta
com as vestes da mais ampla notoriedade e promessa igualmente pública de todo empenho pela continuidade do enlace afetivo, pois,  ao fim e ao cabo, esse tipo de prestígio constitucional redunda em benefício da estabilidade da própria família. O continente que não se exaure em nenhum dos seus conteúdos, inclusive esse do casamento civil;
II – com efeito, após falar do casamento civil como uma das formas de constituição da família, a nossa Lei Maior adiciona ao seu art. 226 um §3º para cuidar de uma nova modalidade de formação de um autonomizado núcleo doméstico, por ela batizado de “entidade familiar”. É o núcleo doméstico que se constitui pela “união estável entre o homem e a mulher,
devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Donde a necessidade de se aclarar:
II.1. - que essa referência à dualidade básica homem/mulher tem uma lógica inicial: dar imediata seqüência àquela vertente constitucional de incentivo ao
casamento como forma de reverência à tradição sócio-cultural-religiosa do mundo ocidental de que o Brasil faz parte (§1º do art. 226 da CF), sabido que o casamento civil brasileiro tem sido protagonizado por pessoas de sexos diferentes, até hoje. Casamento civil, aliás, regrado pela Constituição Federal
sem a menor referência aos substantivos “homem” e “mulher”
II.2. que a normação desse novo tipo de união, agora expressamente referida à dualidade do homem e da mulher,  também se deve ao propósito constitucional de não perder a menor oportunidade de estabelecer relações
jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias do gênero humano, sabido que a mulher que se une ao homem em regime de companheirismo ou  sem papel passado ainda é vítima de comentários desairosos de sua honra objetiva, tal a renitência desse ranço do patriarcalismo entre nós (não se pode esquecer que até 1962, a mulher era juridicamente
categorizada como relativamente incapaz, para os atos da vida civil, nos termos da redação original do art. 6º do Código Civil de 1916); tanto é assim que o §4º desse mesmo art. 226 (antecipo o comentário) reza que “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Preceito, este último, que relança o discurso do inciso I do art. 5º da Constituição (“homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”) para atuar como estratégia de reforço normativo a um mais eficiente combate àquela renitência patriarcal dos nossos costumes. Só e só, pois esse combate mais eficaz ao preconceito que teimosamente persiste para
inferiorizar a mulher perante o homem  é uma espécie de  briga particular ou bandeira de luta que a nossa Constituição desfralda numa outra esfera de arejamento mental da vida brasileira, nada tendo a ver com a dicotomia da heteroafetividade e da homoafetividade. Logo, que não se faça uso da letra da Constituição para  matar o seu espírito, no fluxo de uma postura interpretativa que faz ressuscitar o mencionado. 
 II que a terminologia “entidade familiar” não significa algo diferente de “família”, pois não há hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo núcleo doméstico. Estou a dizer: a
expressão “entidade familiar” não foi usada para designar um tipo inferior de unidade doméstica, porque apenas  a meio caminho da família que se forma pelo casamento civil. Não foi e não é isso, pois inexiste essa figura da  sub-família, família de segunda classe ou família “mais ou menos” (relembrando o poema de Chico Xavier). O fraseado apenas foi usado como sinônimo perfeito de família, que é um organismo, um aparelho, uma entidade, embora sem
personalidade jurídica. Logo, diferentemente do casamento ou da própria união estável, a família não se define como simples instituto ou figura de direito em sentido meramente objetivo. Essas duas objetivas figuras de direito que são o casamento civil e a união estável é que se distinguem mutuamente,  mas o resultado a que chegam é idêntico: uma nova família, ou, se se prefere,
Uma nova “entidade familiar”, seja a constituída por pares homoafetivos,
seja a formada por casais heteroafetivos. Afinal, se a família, como entidade que é, não se inclui no rol das “entidades associativas” (inciso XXI do art. 5º
da CF), nem se constitui em “entidade de classe” (alínea  b do inciso XXI do mesmo art. 5º), “entidades governamentais” (ainda esse art. 5º, alínea A do inciso LXXII), “entidades sindicais” (alínea  c  do inciso III do art. 150), “entidades beneficentes de assistência social” (§7º do art. 195), “entidades filantrópicas” (§1º do art. 199), ou em nenhuma outra tipologia de entidades a que abundantemente se reporta a nossa Constituição,  ela, família, só pode
ser uma “entidade ... familiar”. Que outra entidade lhe restaria para ser? Em rigor, trata-se da mesma técnica redacional que a nossa Lei das Leis usou, por exemplo, para chamar de “entidades autárquicas” (inciso I do §1º do art. 144) as suas “autarquias” (§3º do art. 202).
Assim como chamou de “entidade federativa” §11 do art. 100) cada personalizada unidade política da nossa “Federação” (inciso II do art.
34). E nunca apareceu ninguém, nem certamente vai aparecer, para
sustentar a tese de que “entidade autárquica” não é “autarquia”, nem “entidade federativa” é algo diferente de “Federação”. Por que entidade familiar não é família? E família por inteiro (não pela metade)?  
II. que as diferenças nodulares entre “união estável” e “casamento civil” já são antecipadas pela própria Constituição, como, por ilustração, a submissão da união estável à prova dessa estabilidade (que só pode ser um requisito de 46
natureza temporal), exigência que não é feita para o casamento. Ou quando a Constituição cuida da forma de dissolução do casamento civil (divórcio), deixando de fazê-lo quanto à união estável (§6º do art. 226). Mas tanto numa quanto noutra modalidade de legítima constituição da família, nenhuma referência é feita à interdição, ou à possibilidade,de protagonização por pessoas do mesmo sexo. Desde que preenchidas, também por evidente, as condições legalmente impostas aos casais heteroafetivos. Inteligência que se robustece com a proposição de que  não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um interesse de outrem. E já vimos que a contraparte específica ou o focado contraponto jurídico dos sujeitos homoafetivos só podem ser os indivíduos heteroafetivos, e o fato é que a tais indivíduos não assiste o direito à não-equiparação jurídica com os primeiros. Visto que sua heteroafetividade em si não os torna superiores em nada. Não os beneficia com a titularidade exclusiva do direito à constituição de uma família. Aqui, o reino é da igualdade pura e simples, pois não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham. E quanto à sociedade como um todo, sua estruturação é de se dar, já o dissemos, com fincas na fraternidade, no pluralismo e na proibição do preconceito, conforme
os expressos dizeres do preâmbulo da nossa Constituição.  
III – salto para o §4º do art. 226, apenas para dar conta de que a família também se forma por uma terceira e expressa modalidade, traduzida na concreta existência de uma “comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes”. É o que a doutrina entende por “família monoparental”, sem
que se possa fazer em seu desfavor, pontuo, qualquer inferiorizada comparação com o casamento civil ou união estável. Basta pensar no absurdo
que seria uma mulher casada enviuvar e manter consigo um ou mais filhos do
antigo casal, passando a ter que suportar o rebaixamento da sua família à condição de “entidade familiar”; ou seja, além de perder o marido, essa mulher perderia o  status de membro de uma consolidada família. Sua nova e
rebaixada posição seria de membro de uma simplória “entidade familiar”, porque sua antiga família  morreria com seu antigo marido.  Baixaria ao túmulo com ele. De todo modo, também aqui a Constituição é apenas enunciativa no seu comando, nunca taxativa, pois não se pode recusar a condição de família monoparental àquela constituída, por exemplo, por qualquer dos avós e um ou mais netos, ou até mesmo por tios e sobrinhos. Como não se pode pré-excluir da adoção ativa pessoas de qualquer preferência sexual, sozinhas ou em regime de emparceiramento.
Por último, anoto que a Constituição Federal remete à lei a incumbência de dispor sobre a assistência do Poder Público à adoção, inclusive pelo estabelecimento de casos e condições da sua (dela, adoção) efetivação por parte de estrangeiros (§5º do art. 227); E também nessa parte do seu estoque normativo não abre distinção entre adotante “homo” ou “heteroafetivo”. E como possibilita a adoção por uma só pessoa adulta, também sem distinguir entre o adotante solteiro e o adotante casado, ou então em regime de união estável, penso aplicar-se ao tema o mesmo raciocínio de proibição do preconceito e da regra do inciso II do art. 5º da CF, combinadamente com o
inciso IV do art. 3º e o §1º do art. 5º da Constituição. Mas é óbvio que o mencionado regime legal há de observar, entre outras medidas de defesa e
proteção do adotando, todo o conteúdo do art. 227, cabeça, da nossa Lei Fundamental.
37. Dando por suficiente a presente análise da Constituição, julgo, em caráter preliminar, parcialmente prejudicada a ADPF nº 132-RJ, e, na parte remanescente, dela conheço como ação direta de inconstitucionalidade. No
mérito, julgo procedentes as duas ações em causa. Pelo que dou ao art. 1.723 do 49 Código Civil interpretação conforme à  Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas conseqüências da união estável heteroafetiva.
  É como voto.